19 de novembro de 2011
Era quase uma da manhã quando as sirenes soaram em tom assustador. Mas essa pequena estória havia se iniciado muito tempo antes, no primeiro aniversário de casamento de Guiomar e Joaquim, há vinte anos.
Naquela ocasião, Joaquim trouxera de presente à esposa, que lhe havia presenteado com seu perfume predileto – coisa fina! – um liquidificador.
E foi exatamente nessa época que Guiomar desenvolveu um insano desejo de consumo dentro de si – só não sabia ainda qual era!
Os meses passaram e Guiomar se tornara uma especialista em liquidificador. Fazia de um tudo no barulhento e afiado “ser” eletrodoméstico. Sim, o amigo leitor não fez confusão, pois para a senhora, o liquidificador era um ser, sua companhia diária, ouvia-lhe e, dizem até, que lhe respondia com seu ruído infernal.
Quanto ao marido, o que pedia tinha: tortas, sucos, mousses... De um tudo! E eis que se aplica a tradicional regra, pois quem de tudo tem, esquece que nada é seu e se torna, em sua mente apenas, superior. Assim foi com Joaquim, não fugindo a regra, a se tornar cada dia mais tirano. Em tudo mandava, instituía, normatizava. Guiomar, boa de dar dó, seguia à risca...
Até que chegou o natal, tempo de festa e, para Guiomar, tempo das mais variadas – além de idéias – receitas de liquidificador, mas eis que uma tragédia lhe ocorreu, pois em toda festa de natal chega a hora da troca de presentes. Ela, boa esposa que era, havia comprado um lindo relógio – de marca famosa – para seu... dileto esposo! Por sua vez, Joaquim trazia nas mãos uma enorme caixa que fez os olhos de Guiomar brilharem.
Não se engane caro leitor, não era seda, nem perfume, mui menos jóia. Era uma panela!
As coisas não foram mais as mesmas, bem que Guiomar tentava, mas não acertava uma única receita naquele monte de ferro em forma semi-oval. Pior de tudo, o raio da panela era mudo, não emitia um só ruído... e o silêncio aumentou sua solidão.
Joaquim, imperativo, só reclamava – de todo almoço e todo jantar – tornara-se, nesse ponto, o opressor pleno, no sentido histórico do termo, que inclui a outra parte, oprimida. Nessa estória breve, como o amigo leitor já deve ter percebido, era Guiomar.
Entretanto, todo oprimido tem seu dia e, quando a depressão já tomava Guiomar, no intervalo do insuportável jogo do Internacional, apareceu o anúncio do liquidificador. O aparelho triturava, moía, batia, processava – e se duvidar até jogava cartas! – Nascera ali seu sonho, via-se realizada!
No aniversário de casamento seguinte, tanto fez que ganhou a super máquina, mas seu sonho não estava completo, pois Guiomar podia fazer o mais delicioso banquete que Joaquim reclamava. Foi quando Guiomar decidiu que só queria um tipo de presente: liquidificadores.
O tempo passou... o estado em que se subordinava e oprimia não!
Nesses vinte anos de casamento, ou tormento, juntou todo tipo e tamanho de liquidificadores. Decidiu que já era hora de sua revolução.
Nessa noite o som foi insuportável, mais de cento e cinqüenta liquidificadores ligados ao mesmo tempo, todos eles, de todos os tamanhos, tarde da noite!
Não teve jeito, caro leitor, os vizinhos chamaram a polícia.
Era quase uma da manhã quando as sirenes soaram em tom assustador. A polícia entrou a arrombar a porta e viu a cena: Guiomar ria, desvairada, enquanto via Joaquim triturado, moído, batido, processado... Enquanto dizia: — Isso é por aquela maldita panela que arruinou nosso casamento, depois daquilo você só reclamou!
É por isso que aconselho aos leitores homens: tenham cuidado com as panelas!
Mas o casamento por vezes, e pelas típicas ironias da vida, é indissolúvel. Guiomar estava tão feliz de ter se livrado da panela – e de Joaquim – que seu coração não agüentou tanta alegria – parada fulminante!
Dizem que talvez, para Guiomar, tenha valido a pena os seus minutos sem seu opressor, na companhia de seus ruidosos amigos liquidificadores.
P.S. às amigas leitoras: Não triturem seus maridos!

Eduardo Cantos Davö

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Músico, Escritor, Anarquista e estudante de Direito (embora seja paradoxal). Um idealista, em busca do compreendimento das cousas mais banais que nos rodeiam.